Você já experimentou essa sensação? De acordar de um sonho que por alguns instantes confundiu sua mente do que era realidade e o que era imaginação, sonho? Acredito que é assim que as pessoas se sintam ao olhar de perto as obras da artista australiana Patrícia Piccinini, em uma espécie de sonho, porém acordadas o suficiente para analisar cada detalhe e perfeição de suas esculturas hiper-realistas, que em sua maioria mistura o lúdico com a realidade.
O trabalho dessa grande artista vai além de mostrar suas habilidades e técnicas. Ela não está interessada apenas em mostrar o belo, mas também questionar o que é belo, em sua obras ela conta um pouco das suas histórias, dos seus medos, percepções, questionamentos sobre a vida, sobre relações, sobre humanidade, tecnologias, experimentos genéticos, ou nas palavras da própria artista:
Piccinini:
"Meu trabalho é focado em corpos e relacionamentos; as relações entre pessoas e outras criaturas, entre pessoas e nossos corpos, entre criaturas e o ambiente, entre o artificial e o natural.
Estou particularmente interessada no modo como as realidades cotidianas do mundo ao nosso redor mudam essas relações. Talvez por isso, muitos tenham olhado para a minha arte em termos de ciência e tecnologia, no entanto, para mim, ela é puro surrealismo e mitologia.
Meu trabalho visa mudar a maneira como as pessoas olham para o mundo ao seu redor e questionam suas suposições sobre os relacionamentos que têm com o mundo. Eu estou especialmente interessada em coisas que estão fora de nossas idéias tradicionais de normal ou bonito, ou que atravessam as fronteiras que erigimos entre as coisas.
Como a tecnologia e a cultura contemporâneas mudam nossa compreensão do que significa ser humano?
Qual é o nosso relacionamento com - e responsabilidades para - o que nós criamos?..."
Piccinini:
"De muitas maneiras, eu sempre estive mais interessada nos lados invisíveis ou indesejados da anatomia, do que nos corpos perfeitos que vemos com frequência na mídia. Fui atraída pelos museus de patologia porque era um lugar onde eu podia ver as coisas que eram tão frequentemente escondidas, estranhas ou diferentes ou perigosas. Foi incrível para mim que essa coisa inofensiva parecida com algodão em um pulmão pudesse ser câncer. Eu era fascinada pela beleza complexa, quase floral, que existia sob a pele, e também pelos cortes incongruentemente precisos e retilíneos feitos pelos dissecadores, a fim de mostrá-lo. Eu também estava interessada nas aberrações e variações que encontrei lá, coisas que, embora tecnicamente "patológicas", eram para mim mais intrigantes.
Ainda carrego esse fascínio, embora tenha tendência a inspirar-me mais em zoologia e história natural do que em patologia nos dias de hoje. Tendo dito isso, eu ainda sou frequentemente atraída por essas formas protéicas amorfas que lembram órgãos internos."
Imagem: obra " The Listener"
Imagem: obra "The Carrier"
Imagem: obra "Prone"
E assim como Mary Shelley criou em uma noite o "
Frankenstein"
,
uma criatura de aspecto horrendo, mas que sofria com os mesmos medos e angústias que nós e que só desejava ser amado, assim também são as criaturas de Patrícia Piccinini, que muitas vezes aparentam ser perigosas ao revelar uma imagem grotesca a primeira vista.
E como se relacionar com alguém diferente? Como não julgar pela aparência?
Fica claro que, na percepção da artista, basta tentar enxergar o mundo com os olhos de uma criança.
Imagem: Obra The Welcome Guest"
Veja na foto acima, a presença de um pavão atrás da criatura, o pavão que é considerado uma das aves mais belas, atrás de uma criatura desconhecida... seria o pavão a representação da beleza da alma dessa criatura?
Trabalhar com símbolos, analogias e contrastes é uma forma muito rica de intrigar o espectador. O artista indiretamente pode fazer as perguntas e cabe ao observador refletir sobre o que está vendo. Por essa razão a arte de Piccinini vai muito além da contemplação, ela nos convida a pensar e questionar!
Abaixo, imagem da obra: Indiviso
Nas obras de Piccinini as crianças mostram leveza no olhar, um certo encantamento, tranquilidade e confiança. Elas não tem medo do novo, porque tudo ao seu redor ainda está sendo descoberto, em contra partida nos faz pensar que quando adultos começamos a ter certezas demais, começamos achar que já conhecemos praticamente tudo, que já vimos de tudo, nos tornamos menos abertos para mudanças e novos pontos de vista.
Imagem: obra "The Long Awaited"
Piccini: É difícil saber de onde vêm as ideias, elas simplesmente acontecem. Uma ideia geralmente fermenta por um tempo - anos até - e às vezes simplesmente se derrete, mas às vezes cresce ossos e quer andar. Então eu encontro todas as peças para trazê-la à vida. Eu certamente não me sento e digo: "Vou fazer um trabalho sobre engenharia de tecidos". Estou mais propensa a ser atingida por uma imagem ou movida por uma história e isso levará a outra coisa. Por exemplo, em 1997, vislumbrei esta imagem bizarra de um rato com uma orelha durante o noticiário da noite. Foi tão estranho e meio que trágico e surpreendente ao mesmo tempo. Um pouco de pesquisa me levou ao campo emergente da "engenharia de tecidos", que parecia incorporar de maneira bastante bela a convergência natural / artificial que me preocupava naquela época. A partir daí veio "Protein Lattice", que é tanto sobre essa figura trágica / heróica do rato - e sua questionável "naturalidade" - quanto sobre a tecnologia.
Abaixo a imagem do trabalho "Protein Lattice"
Piccinini:
"Meu interesse pela ciência médica começou quando eu era adolescente. Minha mãe ficou doente por muitos anos antes de morrer. Durante esse tempo, esperei e rezei para que a ciência - a medicina - pudesse ajudar nossa família. No final, não houve ajuda, mas ainda sinto que estou esperando que a ciência ajude; para me ajudar, ajudar minha família e ajudar o mundo em que vivo. No entanto, também sei que a ciência não é perfeita, por mais inteligente que pareça. A ciência não ajudou minha mãe. Eu entendo que nem sempre pode cumprir suas promessas. Eu entendo essa decepção.
No entanto - e isso vai soar muito estranho - não é realmente a ciência em si que eu estou interessada, tanto quanto o impacto sobre as pessoas. Eu acho que minhas criaturas são na verdade mais mitológicas do que científicas. São quimeras que eu construo para contar histórias que explicam o mundo em que vivo mas que não posso entender ou controlar totalmente. Como a maioria dos mitos, eles são frequentemente contos de advertência, mas também são freqüentemente celebrações dessas feras extraordinárias. Você precisa lembrar que os deuses dos mitos antigos tinham grande poder, mas também motivações muito humanas. Eles seguiam seus próprios interesses, com muito pouco sentimento pelos efeitos que poderiam ter em pessoas normais."
A verdade é que as questões da ciência sempre foram assuntos relevantes e temas constantemente presentes na arte, até mesmo nos quadrinhos como os X-Men que são humanos que sofreram mutações em seu DNA, ou o homem-aranha que foi picado por uma aranha modificada em laboratório...quarteto fantástico, etc, etc..
Imagem: obra "QAGOMA"
Imagem: obra "The Young Family"
Imagem: obra "Balasana"
Piccini: "Eu odiaria que as pessoas pensassem que eu fiz um trabalho que prevê o futuro. Na verdade, acho que meu trabalho é sobre o presente. Eu uso o que está acontecendo ao meu redor como um contexto para histórias sobre nós mesmos e sobre nosso relacionamento com outros seres e o mundo. Eu não faço nenhum pronunciamento sobre o que o mundo será ou deveria ser."
Imagem: obra " The Bodyguard"
Imagem: obra "The Student"
Imagem: obra "
The Comforter "
Imagem: obra "
The Observer"
A brilhante artista não é muito chegada a fotos de bastidores, encontramos poucas fotos do seu processo de produção em seu instagram e em outros sites, porém em seu site ela disponibiliza um verdadeiro tesouro, textos! Sim, textos como os que você acabou de ler em que ela conta suas inspirações, textos nos quais ela faz uma breve análise de sua obra, entrevistas e pensamentos, enfim, pudemos conhecer melhor o trabalho dela através de suas próprias palavras, não por uma terceira pessoa, mas sim pela própria artista, e esses textos são verdadeiras fontes de inspiração.
A seguir vou colocar a história contada por ela sobre um de seus trabalhos mais famosos: A grande mãe
Imagem: obra "The Big Mother"
Piccinini: "Ironicamente, eu não cresci em um ambiente com muitos animais ao meu redor, mas para mim, a essência da vida é nutrir e ser nutrida, e isso é algo que atravessa espécies. Sempre que vejo animais nutrindo seus bebês, isso reforça essa ideia, que é realmente forte na Grande Mãe, que foi inspirado por dois eventos na minha vida:
Eu nasci em Serra Leoa, minha mãe era professora de inglês, meu pai era um italiano que veio para construir uma ala extra em uma escola de lá. Eu morei lá até os três anos, quando voltamos para a Itália e depois migramos para a Austrália quando eu tinha sete anos. De qualquer forma, se você viveu na África, sempre tem muitas histórias. Uma que ouvi de um amigo foi sobre a irmãzinha sendo raptada por um babuíno em luto. Muitas vezes, quando os babuínos perdem seus bebês, eles realmente sofrem, e eles continuam a carregar o bebê morto até eles se desintegrarem em seus braços. Parece que essa babuína em particular estava sofrendo tanto que decidiu levar um bebê humano para substituir seu filho perdido. Para mim, esta história nos diz que, em face do luto e da dor de perder um filho, as diferenças entre espécies diferentes não são tão importantes. Temos mais em comum no amor pelas crianças do que diferimos geneticamente - e mesmo assim as diferenças genéticas são realmente muito pequenas. Eu acho isso muito bonito.
A segunda coisa que me inspirou a fazer a Big Mother veio das dificuldades que tive de alimentar meu filho Hector. Ele realmente não queria chupar o que tornava difícil conseguir o leite e, assim, minha irmã sugeriu que eu tentasse amamentar seu bebê, que era mais velho e mais faminto. Eu tentei e...aprendi a alimentar Hector. Foi realmente interessante como é estranho e incomum para uma mãe amamentar o bebê de outra pessoa. Ainda mais estranho talvez seja o quanto mais confortável estamos bebendo o leite materno de outro animal - digamos uma vaca - do que outro ser humano. Essas experiências se tornaram Big Mother.
Quando o visitante se envolve na escultura, eles vêem uma criatura alimentando um bebê humano. No entanto, esta é uma cena melancólica. A criatura é feita para nutrir, mas é apenas o trabalho dela. Como qualquer criatura, ela está programada para amar, mas sempre será a segunda mãe humana das crianças que ela nutre. Ela nunca terá um filho que seja totalmente dela... Então este é um bom exemplo do que eu faço. Eu tento abordar questões éticas, mas através de emoção e empatia. Muitas vezes, tendemos a abordar a ética como algo puro e estéril, especialmente em relação a questões como a biotecnologia ou a Engenharia Genética. De certa forma, isso é útil e importante, porque infelizmente a ética e a empatia freqüentemente entram em conflito. No entanto, isso também os torna um pouco frágeis e fora de contato com as realidades humanas. No passado, comunicamos a ética através de histórias carregadas de emoção; mitologia. O mito costuma agir para explicar um mundo complexo e confuso e esclarecer nosso lugar e responsabilidades nele."
Quando vimos este texto ficamos tão maravilhados com a história por trás da obra, a verdadeira fonte de inspiração e questionamentos que ela quis compartilhar com o mundo. Fascinante! E no site existe um texto para cada obra, vale a pena para quem quiser se aprofundar.
Fica mais fácil entender porque tantas obras dela se referem a maternidade tendo em vista que era algo que ela estava experimentando, e refletindo sobre todas as coisas belas e todas as dificuldades ao ser responsável por uma vida.
A maioria dos grandes artistas colocam em seus trabalhos suas próprias dores e alegrias, e o mais incrível é que cada pessoa irá se expressar de uma forma diferente sobre o mesmo assunto. Por isso a arte é tão fascinante, ela consegue revelar um pouco do universo de cada pessoa, ela consegue materializar o que antes estava apenas no campo das ideias ou da emoção .
Piccinini: "Meu trabalho sempre começa com o desenho. Eu desenvolvo minhas idéias usando desenho e então, quando sinto que está começando a se tornar algo que vale a pena fazer, começo a pensar em como isso pode ser feito. O meio tende a surgir quando começo a pensar sobre a melhor forma de expressar uma ideia particular, seja a fotografia ou a escultura ou um tipo de desenho mais resolvido. Às vezes, há algum tipo de materialidade com o qual quero trabalhar e, outras vezes, é sobre como eu posso conectar melhor os espectadores com as ideias. Nesse momento, começo a pensar em fabricação."
Piccinini: "No estúdio, passamos muito tempo trabalhando em quais materiais funcionarão melhor e também durarão. Fazemos testes e voltamos a eles anos mais tarde para ver como eles ainda estão se apresentando, e isso leva nossas decisões. Por exemplo, sempre usamos resina em vez de poliuretano, embora seja necessário mais trabalho e esteja em lugares onde não pode ser visto, porque a resina tende a ser mais estável aos raios UV do que o uretano. Nós sempre usamos madeira compensada em vez de MDF para material estrutural pelas mesmas razões. O silicone que usamos é o mais duro, mais resistente a UV que podemos obter, e fizemos enormes quantidades de testes e pesquisas para obter uma solução de pintura que é extremamente resistente e reparável."
Piccinini: "No estúdio, usamos uma ampla gama de materiais para as esculturas; silicone, fibra de vidro, cabelo humano e animal, plástico ABS, acrílico dental, emplastros tradicionais e de alta tecnologia, aço inoxidável, pintura automotiva, madeira compensada, metal, objetos encontrados e animais de taxidermia. Também produzimos vídeos e fotografias (analógicos e digitais). Por um trabalho, desenvolvemos um cabelo humano, que envolvia coletar e separar centenas de quilos de cabelo humano, e depois misturá-lo com uma minúscula porcentagem de merino preto seguida de cardação e feltragem. Eu tive esculturas fundidas em bronze, prata e alumínio. Meus desenhos são todos grafite ou tinta pigmentada e guache sobre papel."
A artista chegou a expor suas obras no Brasil em 2015 e 2016 no Centro Cultural Banco do Brasil, a exposição com nome ComCiência trouxe um pouco desse universo fantástico da artista, ainda é possível ver imagens das obras com um audioguia no site:
http://culturabancodobrasil.com.br/portal/comciencia-patricia-piccinini-2/
E agora finalizamos te perguntando... O que você achou dessa matéria?
O que você mais gostou no trabalho dela?
Fonte:
Instagram da artista: https://www.instagram.com/patricia.piccinini/
Site oficial: https://www.patriciapiccinini.net
Outros
https://www.straight.com/arts/1134901/curious-imaginings-patricia-piccininis-beautiful-mutants-engag...
http://www.emptykingdom.com/featured/patricia-piccinini-natures-little-helpers/
http://www.hilarywalker.com.au/patricia-piccinini/
https://www.artsvice.com/en/patricia-piccinini-curious-affection/
Rick Fernandes Studio
Site: www.rfstudiofx.com
Intagram: https://www.instagram.com/rick_fernandes_studio/
Facebook: https://www.facebook.com/rickfernandesstudio/
E-mail: cursos@rfstudiofx.com.br